07/09/2007

Verão 99

"Há vários indícios seguros da chegada do Verão. Espero-os sempre, atento e ansioso, porque preciso do Verão, desesperadamente. O primeiro indício são as meloas do Algarve e o seu sabor único, irreproduzível. Depois, são algumas manhãs de Lisboa, com uma espuma marítima suspensa sobre a claridade do dia e, à noite, os sons da cidade que passam de bairro em bairro, a vizinha que chama o filho, o cão que ladra, o táxi na esquina, uma música que vem de lugar oculto. Em Junho as mulheres começam-se a despir por partes e os pássaros vêm morrer de encontro ao pára-brisas do carro na estrada, porque eu vou mais depressa do que o seu voo pesado. No campo, instala-se um ruído de fundo que é o das cigarras gritando de calor, e, ao fim do dia, oiço as árvores estalar de alívio.

Na primeira noite de Verão, estendo uma rede nordestina no terraço e deito-me para dormir lá fora, deixando uma vela a arder dentro de uma lanterna marroquina, porque atrai os mosquitos para a luz e porque o terraço parece ficar um lugar encantado. E vou adormecendo aos poucos na rede, como um cão adormece, com um olho aberto e outro fechado, nesse prazer prolongado de habitar entre duas fronteiras, a do sono e a da vida.

No outro dia, tinha acabado de adormecer na rede, quando um ligeiro ruído do terraço, melhor dizendo, uma presença pressentida, me despertou, sem me sobressaltar: no campo, habituamo-nos aos ruídos nocturnos inesperados: a dez metros de mim, estática e surpreendida, uma lebre contemplava-me como quem contempla um intruso em casa própria. "Olá, lebre, boa noite!", disse-lhe eu, ensaiando uma intimidade que lhe deve ter parecido abusiva. Ela olhou para mim sem se mexer, depois olhou para a luz da vela, deve ter concluido que o terraço estava ocupado, deu meia-volta e partiu aos saltos, não pé ante pé: não seria lebre não seria nada, se não tem partido à desfilada. Voltei a adormecer e voltei a acordar daí a pouco, desta vez despertado por um longínquo zumbido no céu: um avião, de luzes a piscar, circulava no meio das estrelas, entre Cassiopeia e Orion. Imaginei os passageiros enrolados em mantas, suspensos do mundo a dez mil metros de altitude, fechados naquele prodígio de aço e no seu destino nocturno. Tudo me pareceram indícios de que o mundo estava em paz, sinal seguro da chegada do Verão. Voltei a adormecer até de manhã, até que o sol me bateu na cara e uma gota de suor me escorreu pelos olhos abaixo.

Espremi um sumo de limão para um copo cheio de gelo, espreguicei-me até sentir que os membros voltavam todos à posição normal e caminhei até ao ribeiro que, nesta altura do ano, tinha só dois palmos de água, mas transparente, no seu leito de pedras, areia e plantas aquáticas. Descalço, mas vestido tal como tinha adormecido e acordado, deixei-me cair lá dentro, com a cara contra as pedras e os olhos bem abertos, como se assim me pudesse transformar em peixe. Virei-me ainda de costas e fiquei a sentir a água a correr entre os cabelos, recebendo na cara o primeiro sol da manhã como a faca que passa a manteiga pelo pão.

Por mais que tente explicar-te tantas e tantas vezes, nunca te direi vezes que cheguem como é bom estar vivo."

in "Não te Deixarei Morrer, David Crocket" de Miguel Sousa Tavares

Porque é o rescaldo do Verão, porque lembra o Alentejo e porque descreve sensações de forma sublime...

Sem comentários: