"Pela primeira vez desde há muitos, muitos anos, era um dia da semana, de um mês - Junho - que não era ainda de férias mas já era de Verão, e eu estava deitado na areia da praia, quase deserta, com a serra por detrás e um mar translúcido à minha frente, saboreando cada uma das sílabas dessa palavra: de-sem-pre-ga-do. Caminhei até à água, que surpreendentemente não estava fria e era densa e transparente, e mergulhei lá dentro como se entrasse noutro mundo: vinte anos de errância, de erros e ignorância, vinte anos equívocos, afundavam-se agora, devagar, rente à areia e às pedras, no olhar q seguia a sombra fugidia dos peixes e, afinal, tudo se tornava claro e envolvente na luz que chegava filtrada três metros debaixo de água.
E, todavia, eu sempre o soubera: sempre, sempre, me procurei debaixo de água, sempre, em cada Verão, mergulhei nesta luz e neste silêncio, apalpando com as mãos as rochas e as pedras, alisando o dorso dos peixes e a suavidade de veludo das algas e das anémonas, os meus olhos atentos e deslumbrados com cada coisa, o corpo habituando-se à consistência desta liquidez submersa. Sempre soube que debaixo de água me livraria de todos os males do mundo e emergia, novo e liberto, para as suas ciladas e os seus enganos.
Sentei-me depois na esplanada à beira-mar, os olhos pesados de sal e de azul, eu, uma sangria e uma dose de sardinhas assadas, um cheiro a giesta e a medronho que vinha da serra e nada mais - ninguém, nenhum som, nenhuma recordação, nenhuma ameaça, entre mim e a perfeição deste momento.
E lembrei-me de ti, com ternura (ou seria paixão?). A palma das tuas mãos, a pele dos teus pulsos, os dedos esguios e longos, os dentes brancos num sorriso meio tímido, meio atrevido, o teu riso, o teu humor, a tua inteligência cristalina. Pensei telefonar-te, mas estas coisas não se dizem pelo telefone. Guardei-te para mais tarde, para quando os teus olhos pousassem sobre mim, para quando a tua mão me limpasse o suor da testa, a tua boca limpasse os vestígios de sal da minha pele.
Em vão, como vês, me esforcei por não me distrair. Para passar por ti como se passa por um episódio, por um acidente à beira da estrada, por uma ilusão de água num mar sem fim de areia. Eu queria só a solidão da solidão, o silêncio submerso dos dias vazios e sem destino, a consistência da água e a evidência das pedras. Eu queria um mundo sem ti nem ninguém mais, uma vida - tão merecida - feita de egoísmo e de instantes impartilháveis. Mas tu és como a anémona que segue a corrente que passa, tu és a lapa presa à rocha, o sulco na areia durante a maré vazia que indica o caminho de regresso ao mar, tu és a densidade da água dentro da qual eu me reencontro e reconstruo.
Assim, saí da esplanada, sentei-me "ao volante do meu Chevrolet" pela estrada da serra e subi até ao convento de onde o mundo inteiro se alcança. Veio-me o desejo de ser monge, ali onde a vida não chega, ou lagarto sobre a pedra onde me sentei. Um desejo absoluto de nada. Olhei ao longe este mar da Grécia e esta luz de eternidade, vi pedras e giestas e pinheiros e golfinhos ao fundo, vi tudo o que me manteve cativo até hoje e toda a liberdade à minha frente, olhei o passado e o futuro, o Norte e o Sul, e levantei os braços para voar sobre tudo isto, mas estava preso. Este Verão é teu."
in "Não Te Deixarei Morrer, David Crocket", de Miguel Sousa Tavares
Porque gostei; porque me fez lembrar de ti...
1 comentário:
Porque também me lembrei de ti, anémona, lapa! :) bjito
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